A UNIÃO ERRA, MAS “NUNCA PERDE”: COMENTÁRIOS À LEI COMPLEMENTAR 187, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2021

Carlos Eduardo Pereira Dutra *

  • Aspectos Introdutórios do Tema

O Estado Brasileiro decidiu assumir para si a prestação dos serviços de educação, assistência social e assistência à saúde, mas reconheceu a possibilidade de que referidos serviços sejam também prestados ao público por entidades privadas, não pertencentes à administração pública.

Ciente da importância da colaboração dessas entidades privadas em caráter complementar ao público, o Constituinte estabeleceu que as instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, não devem ter seu patrimônio, renda ou serviços onerados por meio de impostos e que as entidades beneficentes de assistência social não deveriam se sujeitar ao recolhimento de contribuições para a seguridade social.

Tanto que no que se refere à imunidade em relação aos impostos (art. 150, VI, c, da CR/88) quanto em relação à imunidade das contribuições sociais (art. 195, §7º), o Constituinte delegou ao legislador infraconstitucional a definição dos requisitos.

Em relação aos impostos, os requisitos constam do art. 14 do Código Tributário Nacional que, em que pese tratar-se de lei ordinária (Lei 5.172/66), foi formalmente recepcionado – pela CR/88 – com status de lei complementar.

Já em relação às contribuições sociais o primeiro diploma que tentou regulamentar a imunidade prevista no art. 195, §7º foi a Lei Ordinária 8.212/91, que em seu art. 55 estabelecia uma série de requisitos para fruição do beneplácito. Anos mais tarde, em 2009, o art. 55 foi revogado pela Lei 12.101, tendo sido criado em seu lugar um robusto sistema de certificação segregado por áreas de atuação das entidades. Ainda que mais moderno, o sistema de certificação previsto na Lei 12.101 ainda tinha origem em uma Lei Ordinária.

Mesmo antes da promulgação da Lei 12.101/09, as entidades beneficentes de assistência social já haviam iniciado disputa judicial em face da União, argumentando que o art. 55 da Lei 8.212/91 não seria o diploma adequado para regulamentar os requisitos para fruição do benefício, uma vez que por se tratar – a imunidade – de limitação constitucional ao poder de tributar, sua regulamentação deve se dar por meio de Lei Complementar, por força do 146, II, da CR/88.

Após longos anos de discussão o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário 566.622, julgado sob o rito da repercussão geral, no qual restou reconhecido que “… a regência de imunidade faz-se mediante lei complementar.”

Em seu voto o Ministro Marco Aurélio, relator do acórdão, deixou claro que deveria ser aplicado o art. 14 do CTN, também para a imunidade relativa às contribuições sociais. Observe:

O § 7º do artigo 195 deve ser interpretado e aplicado em conjunto com o preceito constitucional transcrito, afastando-se dúvida quanto à reserva exclusiva de lei complementar para a disciplina das condições a serem observadas no exercício do direito à imunidade. No âmbito do sistema normativo brasileiro, e considerada a natureza tributária das contribuições sociais, é no Código Tributário Nacional, precisamente no artigo 14, que se encontram os requisitos exigidos.

(…)

Nesse sentido, os requisitos estipulados no artigo 14 do Código Tributário Nacional satisfazem, plenamente, o controle de legitimidade dessas entidades a ser implementado pelo órgão competente para tanto – a Receita Federal do Brasil. O § 1º do aludido artigo 14 permite, inclusive, a suspensão do benefício caso seja atestada a inobservância dos parâmetros definidos.

Nos debates que se seguiram ao voto do Ministro Marco Aurélio, ele reafirma sua posição pela aplicação do art. 14 do CTN e, em resposta a uma observação do Ministro Gilmar Mendes, concluiu “… no sentido de que se aplica o Código Tributário Nacional, o qual pode ser, inclusive, alterado para serem impostas outras condições, mas mediante lei complementar.

Passados quase cinco anos da conclusão do julgamento, as entidades beneficentes de assistência social, no apagar das luzes de 2021, devem se preparar para a vigência da Lei Complementar n. 187, de 16 de dezembro de 2021, que possui a seguinte ementa:

Dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes e regula os procedimentos referentes à imunidade de contribuições à seguridade social de que trata o § 7º do art. 195 da Constituição Federal; altera as Leis nos 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), e 9.532, de 10 de dezembro de 1997; revoga a Lei nº 12.101, de 27 de novembro de 2009, e dispositivos das Leis nos 11.096, de 13 de janeiro de 2005, e 12.249, de 11 de junho de 2010; e dá outras providências.

Contendo, ao todo, 48 artigos, a Lei Complementar 187/21 é dividida em cinco capítulos. Ao longo das próximas linhas iremos comentar aspectos relevantes e inovadores da LC 187/21 sendo que, para tanto, criamos um quadro comparativo entre a redação atual e a redação anterior, dada pela Lei 12.101/09. Nessa primeira análise realizamos a comparação dos Capítulos I, III, IV e V, sendo que em relação ao Capítulo II analisamos apenas a Seção I, tendo em vistas que as Seções II, III e IV tratam de aspectos específicos em relação às áreas de saúde, assistência social e assistência à saúde, que iremos analisar em momento oportuno.

  • A Lei Complementar 187/21 altera a regra de remuneração e distribuição de resultados?

Em relação à remuneração, a LC 187/21 possui previsões praticamente idênticas às que constavam da Lei 12.101/09, impedindo que dirigentes estatutários, conselheiros, associados, instituidores ou benfeitores percebam remuneração, vantagens ou benefícios, direta ou indiretamente, por qualquer forma ou título, mas ressalvando a possibilidade de remuneração ao dirigentes não estatutários, bem como aos estatutários desde que esses últimos recebam remuneração inferior, em seu valor bruto, a 70% (setenta por cento) do limite estabelecido para a remuneração de servidores do Poder Executivo federal, dentre outras condições que também já constavam da Lei 12.101/09.

O grande destaque aqui deve ser dado à redação do inciso V do art. 3º da LC 187/21, em comparação com o art. 29, V, da Lei 12.101/09, abaixo transcritos de forma comparativa:

Lei 12.101/09 Lei Complementar 187/21
Art. 29 (…) V – não distribua resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, sob qualquer forma ou pretexto; Art. 3º (…) V – não distribuam a seus conselheiros, associados, instituidores ou benfeitores seus resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, sob qualquer forma ou pretexto, e, na hipótese de prestação de serviços a terceiros, públicos ou privados, com ou sem cessão de mão de obra, não transfiram a esses terceiros os benefícios relativos à imunidade prevista no § 7º do art. 195 da Constituição Federal;

Observe que o atual inciso V impede a distribuição de resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, sob qualquer forma ou pretexto, apenas aos conselheiros, associados, instituidores ou benfeitores, enquanto a redação anterior, mais genérica, impedia distribuição de resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, sob qualquer forma ou pretexto, para qualquer pessoa, física ou jurídica. A partir dessa constatação fica o questionamento em relação à distribuição de resultados para os empregados dessas entidades.

Conforme já tivemos a oportunidade de nos manifestarmos em outro momento[1], ainda que a participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, tenha previsão, desde a Constituição de 1988, como um direito social do trabalhador, apenas em 1994 foi regulamentada, por meio da Medida Provisória n. 794, posteriormente convertida na Lei 10.101, de 19 de dezembro de 2000.

A legislação estabelece que “dos instrumentos decorrentes da negociação deverão constar regras claras e objetivas quanto à fixação dos direitos substantivos da participação e das regras adjetivas, inclusive mecanismos de aferição das informações pertinentes ao cumprimento do acordado, periodicidade da distribuição, período de vigência e prazos para revisão do acordo”. Podem ser adotados, como critérios e condições para o pagamento do PLR, índices de produtividade, qualidade ou lucratividade, bem como programas de metas, resultados e prazos, pactuados previamente.

O §3º do art. 2º da Lei 10.101/2000, que estabelece que as entidades sem fins lucrativos não se equiparam a empresa e, portanto, não estariam sujeitas à referida lei, ou seja, não estariam obrigadas ao pagamento de PLR. Contudo, o mencionado dispositivo elenca ainda uma série de condicionantes que, de forma cumulativa, devem ser preenchidas para que se configure a dispensa de sujeição ao pagamento de PLR, sendo eles:

  1. Não distribuir resultados, a qualquer título, ainda que indiretamente, a dirigentes, administradores ou empresas vinculadas;
  2. Aplique integralmente os seus recursos em sua atividade institucional e no país;
  3. Destinar o seu patrimônio a entidade congênere ou ao poder público, em caso de encerramento de suas atividades;
  4. Manter escrituração contábil capaz de comprovar a observância dos demais requisitos deste inciso, e das normas fiscais, comerciais e de direito econômico que lhe sejam aplicáveis.

Veja que o dispositivo permite que as entidades sem fins lucrativos que cumpram os requisitos acima, fiquem dispensadas de observar a legislação. Contudo, isso não significa, a nosso ver, que a lei tenha vedado, às entidades sem fins lucrativos, o direito de, assim querendo, premiar as boas condutas de seus empregados, por meio de um programa de participação não sobre o lucro, mas sim sobre o resultado.

Ainda que nos pareça possível que uma entidade sem fins lucrativos crie programa de bonificação de resultado baseado em outros índices admitidos pela legislação que não obviamente o lucro, reconhecemos que essa interpretação encontra forte resistência na doutrina e mesmo na jurisprudência.

Sendo assim, superada a discussão quanto à possibilidade de uma entidade sem fins lucrativos criar programa de participação nos resultados, entendemos que a LC 187/21 permite interpretar que a distribuição de resultados aos empregados não é óbice ao gozo da imunidade constitucional em relação às contribuições para a seguridade social.

Ainda em relação à remuneração, cabe destacar que a atual redação não mais exige que o diretor não estatutário tenha vínculo de emprego para perceber remuneração. Observe:

Lei 12.101/09 Lei Complementar 187/21
§ 1o  A exigência a que se refere o inciso I do caput não impede:  § 1º A exigência a que se refere o inciso I do caput deste artigo não impede:
I – a remuneração aos diretores não estatutários que tenham vínculo empregatício; I – a remuneração aos dirigentes não estatutários; e

A inovação é um reflexo da modernidade, permitindo que a entidade possa contratar, na condição de autônomo, por exemplo, diretor que assumirá funções na entidade, podendo ainda exercer outra atividade remunerada, não sendo necessário que tenha, para com a entidade imune, relação de subordinação e habitualidade.

  • Quais tributos estão abrangidos pela imunidade constante do art. 195, §7º, da CR/88?

A pergunta acima ainda é objeto de controvérsia tendo em vista que a Lei 12.101/09, agora revogada pela LC 187/21, estabelecia que a entidade beneficente certificada faria jus à “isenção” do pagamento das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. Já a atual redação, dada pela LC 187/21, menciona não o dispositivo da legislação ordinária, mas sim a norma de competência constitucional. Observe:

Lei 12.101/09 LC 187/221
Art. 29.  A entidade beneficente certificada na forma do Capítulo II fará jus à isenção do pagamento das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, desde que atenda, cumulativamente, aos seguintes requisitos Art. 4º A imunidade de que trata esta Lei Complementar abrange as contribuições sociais previstas nos incisos I, III e IV do caput do art. 195 e no art. 239 da Constituição Federal, relativas a entidade beneficente, a todas as suas atividades e aos empregados e demais segurados da previdência social, mas não se estende a outra pessoa jurídica, ainda que constituída e mantida pela entidade à qual a certificação foi concedida.

Desse modo, em que pese existissem discussões judiciais para inclusão da contribuição ao PIS na imunidade do §7º do art. 195, a legislação de regência (Lei 12.101/09) reconhecia a imunidade apenas em relação aos seguintes tributos: Contribuição Previdenciária Patronal, Contribuição sobre os Riscos Ambientais do Trabalho, COFINS e CSLL.

A atual redação relaciona, corretamente a nosso ver, a norma de competência constitucional, excluindo apenas o inciso II do art. 195 da CR/88, uma vez que ele dispõe sobre a contribuição dos empregados, ou seja, para que não pairem dúvidas, o fato da entidade ser imune não dispensa, obviamente, o recolhimento da contribuição previdenciária dos empregados, que se dá – atualmente – mediante retenção quando do pagamento da remuneração.

De modo prático, em nosso entender, os seguintes tributos estão expressamente abrangidos pela regra do art. 4º da LC 187/21:

  1. Contribuição Previdenciária Patronal: com norma de competência no art. 195, I, “a”, a CPP está abrangida pela imunidade;
  2. COFINS: com norma de competência no art. 195, I, “b”, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social está abrangida pela imunidade;
  3. Contribuição Sobre o Lucro Líquido: com norma de competência no art. 195, I, “c”, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social está abrangida pela imunidade;
  4. Contribuição Sobre a Receita de Concursos de Prognósticos: Contribuição Social pouco conhecida, esse tributo é devido por quem realiza concursos de sorteios de números, loterias e apostas;
  5. Contribuição Sobre a Importação de Bens ou Serviços do Exterior: Incluído pela Emenda Constitucional 42/2003, o inciso IV do art. 195 da CR/88 surgiu com o objetivo de permitir ao legislador infraconstitucional a criação de contribuições incidentes sobre a importação de bens e/ou serviços equiparando a carga tributária a que está sujeita o importador, com a carga tributária a que está sujeito o produtor nacional. Ocorre que a EC 42/2003 ao mesmo tempo que incluiu o inciso IV no art. 195 da CR/88 deu nova redação ao inciso II do §2º do art. 149 da CR/88, para estabelecer que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput do art. 149, também poderão incidir sobre a importação de produtos estrangeiros ou serviços. Em nosso entender, enquanto o art. 195, IV, atua como norma de competência da COFINS Importação, o art. 149, §2º, II, atua como norma de competência do PIS Importação, o que fica evidente quando se lê o art. 1º da Lei 10.865/04[2] que “dispõe sobre a Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social incidentes sobre a importação de bens e serviços e dá outras providências”. Desse modo, pela redação da LC 187/21, o PIS Importação não está abrangido pela regulamentação, ainda que o §7º do art. 195 não faça distinção.
  6. Contribuição PIS/Pasep: As contribuições PIS e Pasep, em que pese tenham sido instituídas antes da CR/88, acabaram sendo expressamente recepcionadas pelo art. 239 da CR/88, de modo que acerta o legislador infraconstitucional ao incluir expressamente a contribuição PIS/Pasep na regulamentação da imunidade.
  • Uma entidade que atua em mais de uma área, deve obter certificação junto a qual Ministério?

Já na vigência da Lei 12.101/09 a certificação se dava com base na área de atuação da entidade, sendo que a definição do ministério responsável se dava pelo critério de preponderância, ou seja, com base na atividade econômica definida como a principal, pela entidade, junto ao Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ. Com a LC 187/21, a definição de preponderância passou a se dar com base no registro dos custos e despesas, conforme as normas brasileiras de contabilidade. Observe:

Lei 12.101/09 LC 187/2021
Art. 22.  A entidade que atue em mais de uma das áreas especificadas no art. 1o deverá requerer a certificação e sua renovação no Ministério responsável pela área de atuação preponderante da entidade. Parágrafo único.  Considera-se área de atuação preponderante aquela definida como atividade econômica principal no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica do Ministério da Fazenda.   Art. 33.  A entidade que atue em mais de uma das áreas a que se refere o art. 1o deverá, na forma de regulamento, manter escrituração contábil segregada por área, de modo a evidenciar o patrimônio, as receitas, os custos e as despesas de cada atividade desempenhada. Art. 6º (…) § 1º A entidade que atue em mais de uma das áreas a que se refere o art. 2º desta Lei Complementar deverá manter escrituração contábil segregada por área, de modo a evidenciar as receitas, os custos e as despesas de cada atividade desempenhada.   Art. 34 (…) § 1º Consideram-se áreas de atuação preponderantes aquelas em que a entidade registre a maior parte de seus custos e despesas nas ações previstas em seus objetivos institucionais, conforme as normas brasileiras de contabilidade. § 2º A certificação dependerá da manifestação de todas as autoridades competentes, em suas respectivas áreas de atuação. § 3º No caso em que a entidade atue em mais de uma das áreas a que se refere o art. 2º desta Lei Complementar, será dispensada a comprovação dos requisitos específicos exigidos para cada área não preponderante, desde que o valor total dos custos e das despesas nas áreas não preponderantes, cumulativamente: I – não supere 30% (trinta por cento) dos custos e das despesas totais da entidade; II – não ultrapasse o valor anual fixado, nos termos do regulamento, para as áreas não preponderantes.

Observe, ainda, que – conforme §3º do art. 34 – as entidades que atuem em mais de uma área deverão observar os requisitos para cada uma dessas áreas, sendo dispensada a comprovação dos requisitos específicos exigidos para cada área não preponderante apenas nas hipóteses em que, cumulativamente, o valor total dos custos e das despesas nas áreas não preponderantes, não supere 30% (trinta por cento) dos custos e das despesas totais da entidade e não ultrapasse o valor anual fixado, nos termos do regulamento, para as áreas não preponderantes.

  • A União continuará discutindo autos de infração fundamentados na legislação revogada e/ou declarada inconstitucional?

O Código Tributário Nacional reconhece, no art. 156, a possibilidade de o legislador infraconstitucional, por meio da remissão, extinguir o crédito tributário. Nas palavras de Luis Eduardo Schoueri “remissão é perdão da dívida. Se o credor perdoa a dívida, está extinto o crédito”.[3]

Fundamentado nessa possibilidade o legislador complementar previu, no art. 41 da LC 187/2021, a extinção dos créditos decorrentes de contribuições sociais lançados contra instituições sem fins lucrativos expressamente motivados por decisões judiciais ou administrativas que tenham adotado como fundamento para cobrança de contribuições sociais, dispositivos de lei ordinária declarados inconstitucionais, em razão dos efeitos da inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 2028 e 4480 e correlatas.

Art. 41. A partir da entrada em vigor desta Lei Complementar, ficam extintos os créditos decorrentes de contribuições sociais lançados contra instituições sem fins lucrativos que atuam nas áreas de saúde, de educação ou de assistência social, expressamente motivados por decisões derivadas de processos administrativos ou judiciais com base em dispositivos da legislação ordinária declarados inconstitucionais, em razão dos efeitos da inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 2028 e 4480 e correlatas.

                Observe que o art. 41 faz expressa menção as ADINs 2028 e 4480, cujas ementas seguem abaixo transcritas:

(…) Nos exatos termos do voto proferido pelo eminente e saudoso Ministro Teori Zavascki, ao inaugurar a divergência: 1. “[…] fica evidenciado que (a) entidade beneficente de assistência social (art. 195, § 7º) não é conceito equiparável a entidade de assistência social sem fins lucrativos (art. 150, VI); (b) a Constituição Federal não reúne elementos discursivos para dar concretização segura ao que se possa entender por modo beneficente de prestar assistência social; (c) a definição desta condição modal é indispensável para garantir que a imunidade do art. 195, § 7º, da CF cumpra a finalidade que lhe é designada pelo texto constitucional; e (d) esta tarefa foi outorgada ao legislador infraconstitucional, que tem autoridade para defini-la, desde que respeitados os demais termos do texto constitucional.”. 2. “Aspectos meramente procedimentais referentes à certificação, fiscalização e controle administrativo continuam passíveis de definição em lei ordinária. A lei complementar é forma somente exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo art. 195, § 7º, da CF, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem observadas por elas.”. 3. Procedência da ação “nos limites postos no voto do Ministro Relator”. Arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente da conversão da ação direta de inconstitucionalidade, integralmente procedente.

(ADI 2028, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Relator(a) p/ Acórdão: ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 02/03/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-095  DIVULG 05-05-2017  PUBLIC 08-05-2017)

Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Direito Tributário. 3. Artigos 1º; 13, parágrafos e incisos; 14, §§ 1º e 2º; 18, §§ 1º, 2º e 3º; 29 e seus incisos; 30; 31 e 32, § 1º, da Lei 12.101/2009, com a nova redação dada pela Lei 12.868/2013, que dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social e regula os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social. 4. Revogação do § 2º do art. 13 por legislação superveniente. Perda de objeto. 5. Regulamentação do § 7º do artigo 195 da Constituição Federal. 6. Entidades beneficentes de assistência social. Modo de atuação. Necessidade de lei complementar. Aspectos meramente procedimentais. Regramento por lei ordinária. 7. Precedentes. ADIs 2.028, 2.036, 2.621 e 2.228, bem como o RE-RG 566.622 (tema 32 da repercussão geral). 8. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente conhecida e, nessa parte, julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 13, III, § 1º, I e II, § 3º, § 4º, I e II, e §§ 5º, 6º e 7º; art. 14, §§ 1º e 2º; art. 18, caput; art. 31; e art. 32, § 1º, da Lei 12.101/2009, com a nova redação dada pela Lei 12.868/2013.

(ADI 4480, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 27/03/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-089  DIVULG 14-04-2020  PUBLIC 15-04-2020)

Em que pese não tenha sido expressamente referido no art. 41, parece-nos que, por correlato, pode ser mencionado, também, o resultado do julgamento do Recurso Extraordinário 566.622, sobre o qual nos manifestamos no primeiro tópico do presente artigo.

De fato, diversas entidades socorreram-se do Poder Judiciário para discutir sua sujeição a Lei 8.212/91 (e posteriormente Lei 12.101/09) tendo sido reconhecido, para algumas, a necessidade de observar apenas e tão somente o art. 14 do CTN. Outras ainda foram autuadas pela Receita Federal do Brasil por não observarem os requisitos constantes da lei ordinária.

Interessante notar que o art. 41 não exige que a inconstitucionalidade da lei ordinária tenha sido reconhecida em favor da entidade cujos créditos serão remidos e sim simplesmente que a decisão administrativa, como por exemplo um auto de infração, tenha adotado como fundamento dispositivo de lei ordinária que tenha sido julgamento pelo STF como inconstitucional seja na ADIN 2028, na ADIN 4480 ou em outra decisão correlata.

  • O que muda com a Lei Complementar 187/21 para quem, por força de ação judicial, estava seguindo o constante do art. 14 do Código Tributário Nacional?

Aqui não nos parece existir muita dúvida. Sendo o atual diploma uma lei complementar, está sendo obedecido não apenas o comando do art. 146, II, da CR/88, mas também a própria orientação do STF extraída do RE 566.622, de modo que aquelas entidades que, por força de ação judicial, estavam aplicando o art. 14 do CTN, passarão, a partir de 17 de dezembro de 2021, a se sujeitar à Lei Complementar 187/21, devendo obter certificação e cumprir com os demais requisitos, sob pena de autuação na hipótese de não recolhimento das contribuições sociais.

  • Conclusão

A leitora atenta deve ter percebido que intitulamos o presente ensaio com a seguinte frase: A UNIÃO ERRA, MAS NUNCA PERDE. Ainda que você possa ter captado a mensagem, pensamos que seria importante esclarecer o sentido que queremos dar a ela.

Quando afirmamos que a União erra estamos fazendo clara referência ao fato de que nos parece evidente que, por se tratar de limitação constitucional ao Poder de Tributar, a regulamentação da imunidade deve se dar por meio de lei complementar. Tentar regulamentar por meio de lei ordinária foi o erro da União, que aliás já vimos acontecer em outras oportunidades como, por exemplo, quando da tentativa de ampliação do critério material das contribuições PIS e COFINS pela Lei Ordinária 9.718/98, conforme Recurso Extraordinário 346.084.

Mas afirmamos, também, que a União nunca perde. Em verdade trata-se, é claro, de uma frase com certo exagero, mas que nos parece fazer muito sentido, uma vez que – ao ser derrotada – a União se vale de instrumentos para voltar a cobrar os tributos do modo como deseja. Assim foi, por exemplo, quando decidiu majorar em um ponto percentual a alíquota da COFINS incidente na importação de bens e/ou serviços em razão da derrota no julgamento do Recurso Extraordinário 559.937, dentre outros casos.

É o que ocorre agora. A União errou ao regulamentar a imunidade do art. 195, §7º da CR/88 por Lei Ordinária, mas não perdeu, uma vez que com a publicação da Lei Complementar 187/21, cuja redação é muito semelhante à Lei 12.101/09, a União encerra um capítulo e impõe às entidades beneficentes de assistência social, requisitos e certificações muito mais complexos se comparados aos requisitos para fruição da imunidade dos impostos.

* Carlos Eduardo Pereira Dutra é advogado, sócio do Dalcomuni, Dutra e Colognese Advogados. Mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR. Professor de Direito e Coordenador da Especialização em Direito Tributário Empresarial da PUCPR. Membro do IDT-PR, IBDT e das Comissões de Direito Tributário e Cooperativo da OAB/PR.


[1] DUTRA, Carlos Eduardo Pereira; DALCOMUNI NETO, Mario. Do pagamento de participação nos resultados por entidades sem fins lucrativos. Disponível em https://dalcomunidutracolognese.com.br/2020/03/30/do-pagamento-de-participacao-nos-resultados-por-entidades-sem-fins-lucrativos/.

[2] Lei 10.865/04. Art. 1º Ficam instituídas a Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público incidente na Importação de Produtos Estrangeiros ou Serviços – PIS/PASEP-Importação e a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social devida pelo Importador de Bens Estrangeiros ou Serviços do Exterior – COFINS-Importação, com base nos arts. 149, § 2º , inciso II, e 195, inciso IV, da Constituição Federal, observado o disposto no seu art. 195, § 6º .

[3] SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito Tributário. 9ª Ed. Saraiva: 2019. p. 696.